Discussão se insere na regulamentação de uma lei de 2022 que alterou as regras do Programa de Alimentação do Trabalhador
Por Thaís Barcellos — Brasília

Com atendimento no almoço, em uma região comercial, o restaurante Casa da China, tradicional self-service de comida oriental em Belo Horizonte (MG), aceita todas as quatro principais bandeiras de vale-refeição. As taxas cobradas variam de 3,5% a 6,5%, mais altas do que as de cartão de crédito e débito, mas os vouchers viabilizam até 40% das vendas do estabelecimento.
— Se eu não aceitar, outro restaurante vai levar meu cliente. O custo é alto, coloco junto com os impostos no meu custo geral. Mas, se eu perder de 35% a 40% do meu volume de vendas, eu fecho — explica Matheus Daniel, de 45 anos, dono do estabelecimento, destacando que o “dinheiro carimbado” é fundamental em meio ao orçamento apertado dos brasileiros.
A experiência de Matheus Daniel, no Casa da China, se repete em outros bares e restaurantes do país, sobretudo aqueles que funcionam durante o horário comercial, porque os funcionários de empresas próximas preferem almoçar em lugares que aceitam os vales, uma parte da renda direcionada especificamente para a alimentação.
De outro lado, com 80% do mercado concentrado em quatro empresas, a taxa média cobrada dos estabelecimentos pela operação com os vouchers é mais alta do que outros meios de pagamento. Segundo uma pesquisa Ipsos-Ipec, a média para o vale-refeição é de 5,19%, contra 3,22% no cartão de crédito e 2% no débito.
— A maior parte dos operadores de alimentação no mercado de vales é pequeno. Se não receberem esse meio de pagamento, não sobrevivem. É como se o setor fosse sequestrado para trabalhar com essa forma de pagamento — resume o presidente da Associação Nacional de Restaurantes (ANR), Erik Momo, dono da rede de restaurantes Pizzeria 1900.
Para coibir os abusos, o governo decidiu copiar a experiência bem-sucedida da abertura do mercado de cartões para aumentar a competição entre empresas de vale refeição e vale alimentação. Em um decreto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva também deve limitar as taxas cobradas pelas bandeiras aos estabelecimentos comerciais e reduzir o prazo de repasse dos valores aos lojistas.
A ideia do Palácio do Planalto é publicar o decreto ainda este mês. Só falta o presidente Luiz Inácio Lula da Silva bater o martelo sobre o prazo para reembolso aos bares, restaurantes e mercados, que hoje é de até 30 dias após a operação, e sobre o percentual máximo que poderá ser cobrado dos lojistas por transação, que deve ficar entre 3% e 4%.
Regra de transição
Mas aliados de Lula garantem que haverá regras de transição, proporcionais ao tamanho das empresas, para evitar mudanças bruscas no mercado. Toda a fiscalização será realizada pelo Ministério do Trabalho, responsável pelo Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), que dá benefícios tributários a empregadores que têm políticas de alimentação, a exemplo dos vales de refeição e alimentação.
Parte das empresas de voucher, contudo, argumenta que a imposição de um teto para a taxa e a redução do prazo podem produzir o efeito contrário ao desejado pelo governo e aumentar a concentração, com maior dificuldade de sobrevivência das “tiqueteiras” menores. É o que mostra um estudo da Tendências Consultoria, encomendado pela Associação Brasileira das Empresas de Benefícios ao Trabalhador (ABBT), que representa as principais bandeiras de VA e VR.
A discussão se insere na regulamentação de uma lei de 2022 que alterou as regras do PAT. Justamente para aumentar a concorrência, a atratividade para os estabelecimentos e o benefício ao trabalhador - que muitas vezes revende os vales no mercado informal, com desconto no valor - a legislação estabeleceu a interoperabilidade entre as bandeiras de voucher e a portabilidade.
O primeiro mecanismo permitiria que todos os cartões fossem aceitos em qualquer "maquininha" e o segundo daria ao trabalhador o poder de escolher o vale que quer usar. Hoje, a empresa de VA e VR é contratada pelo empregador. No governo Lula, o assunto ganhou força após a crise de preços de alimentos no início deste ano, sob o argumento de que a redução de abusos no mercado de vouchers poderia abrir espaço para conter a inflação nas prateleiras de supermercados e nos cardápios de restaurantes.
Propostas
Segundo aliados, a opção escolhida foi implementar a interoperabilidade por meio da abertura dos arranjos e do fim das cláusulas de exclusividade, permitindo assim que qualquer “maquininha” faça o credenciamento dos vales nos estabelecimentos comerciais.
Hoje, as principais empresas do mercado de voucher de alimentação estão estruturadas na forma de arranjo fechado, ou seja, controlam todo o processo, desde o contrato com os empregadores que ofertam os vales aos funcionários, passando pelo credenciamento dos estabelecimentos até o processamento e a liquidação das operações.
Essa abertura foi exatamente o que aconteceu no mercado de cartões de crédito e débito há uma década, possibilitando uma competição maior das “maquininhas”, antes restritas a duas empresas, e a redução dos custos para os lojistas. De acordo com interlocutores, essa obrigatoriedade só irá valer para as maiores "tiqueteiras", com base no número de usuários.
A limitação das taxas também repete a experiência do mercado de cartões. O Banco Central determina um teto para tarifa cobrada das “maquininhas” pelos emissores de cartão (taxa de intercâmbio) de 0,5% no débito e de 0,7% no pré-pago. No caso dos vales, a ideia do governo é limitar tanto as taxas cobradas das “maquininhas” quanto o percentual total que os estabelecimentos pagam pela operação (taxa de desconto).
Além disso, haverá um prazo máximo para repasse dos valores pagos por meio de VA e VR aos bares, restaurantes e supermercados, que hoje é de até 30 dias após a transação, ainda que o benefício seja creditado nos vales da maioria dos trabalhadores de forma pré-paga. Assim, no intervalo entre a compra e o pagamento ao lojista, a empresa de voucher consegue aplicar o valor no mercado financeiro e ganhar com os juros ou então oferecer soluções de antecipação aos estabelecimentos a custo elevado.
Além do incentivo direto à competição com a abertura dos arranjos, o governo entende que a limitação de abusos no prazo de repasse e nas taxas cobradas deve coibir também outra prática das "tiqueteiras" que já foi até proibida pela lei de 2022: o "rebate". Uma espécie de "cashback" dado pelas empresas de voucher aos empregadores de forma a incentivá-los a fechar o contrato. Segundo os balanços públicos da Tícket, Alelo e Pluxee, foram gastos mais de R$ 1,5 bilhão em rebate em 2024.
Riscos de concentração
O estudo da Tendências, contudo, aponta que uma redução do prazo impõe riscos significativos à sustentabilidade econômica e operacional das empresas de voucher devido ao impacto no fluxo de caixa. O prejuízo, segundo o estudo, seria maior para aquelas que têm exposição relevante ao modelo pós-pago, proibido pela lei de 2022, mas ainda presente em contratos antigos, sobretudo com o poder público.
“Empresas de maior porte sofreriam substanciais impactos operacionais em decorrência da medida, mas empresas de menor porte e com maior dependência de contratos públicos encontram-se ainda mais vulneráveis aos efeitos financeiros e operacionais da medida, podendo comprometer sua viabilidade, levando à saída do mercado”, avalia a Tendências.
O presidente da ABBT, Lucio Capelletto, avalia que a limitação da taxa deve prejudicar também as empresas menores, com atuação regional.
— Elas podem não conseguir mais oferecer o serviço. E, para as maiores, pode não ser interessante atender um estabelecimento pequeno. Então pode trazer um prejuízo ao trabalhador.
Já sobre a abertura dos arranjos, Capeletto diz que o risco é de que as credenciadoras “independentes” passem a atuar apenas como meio de pagamento, sem respeitar as premissas do PAT para oferecer alimentação adequada e nutritiva ao trabalhador.
Como alternativa, a ABBT, por meio das maiores empresas do setor, propôs uma redução de 30% nas taxas cobradas pelas facilitadoras de pequenos comerciantes. Outra ideia é criar um fundo social privado, com recurso do PAT, de forma a custear a oferta de vales a categorias desprovidas de direitos trabalhistas, como entregadores e catadores de lixo.
A Zetta, que representa parte das novatas, como o Ifood, também avalia que a redução do prazo deve ter um impacto significativo sobre a viabilidade econômica das empresas menores e que estão entrando no mercado, justamente pela perda de receitas financeiras. Segundo a vice-presidente da entidade, Fernanda Laranja, a redução do prazo e a limitação da taxa podem beneficiar o lojista, mas dificilmente vão impactar o trabalhador, como mostram outras experiências como produtos financeiros.
— São medidas paliativas, vai atender uma parte do mercado, dos restaurantes, mas o trabalhador não vai ser beneficiado, como deseja o governo — disse ela, que defende que a interoperabilidade e a portabilidade são fundamentais para abrir o mercado.
Já Juliana Minorello, diretora executiva da Câmara Brasileira de Benefícios ao Trabalhador (CBBT), que reúne as empresas de tecnologia Caju, Flash e Swile, afirmou, em nota, que esforços realizados com o intuito de corrigir as distorções no PAT “são fundamentais para garantir competição justa, segurança jurídica ao setor e fortalecimento da política”.
Ainda que defenda mais concorrência, Matheus Daniel, dono da Casa da China, afirma que dificilmente uma redução nas taxas cobradas pelas empresas de vale vai se reverter em queda de preços para seus clientes, devido às margens apertadas dos restaurantes.
— Isso diminuiria um pouco a pressão para aumentar o preço — explica.
No setor de supermercados, o vice-presidente da Associação Brasileira de Supermercados (Abras), Márcio Milan, defende as mudanças do governo e vê benefícios ao preço para o consumidor.
— Se aprovadas, podem representar uma queda de até 2% no valor da cesta básica de alimentos, beneficiando milhões de famílias brasileiras.
Já o presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), Paulo Solmucci, reconhece o problema das altas taxas, mas é contrário ao tabelamento de preços.
— Estou otimista que as empresas e o governo cheguem a um bom termo. As empresas sabem que vão ter que ceder, o que está em discussão é o prazo para começar a valer.