Ricardo Calcini e Renata Zulma Alves do Vale
Maria foi contratada em 2012 para trabalhar como caixa numa das lanchonetes de uma rede de fast food. A vida seguia seu curso normal até que, em 2013, uma tragédia mudou sua vida: Maria sofreu um grave acidente de trânsito a caminho de casa, resultando na amputação de sua perna esquerda.
Após ser afastada pelo INSS, ela passou por um processo de reabilitação. Em agosto de 2018, mesmo ainda sofrendo com dores intensas e aguardando uma nova cirurgia, Maria retornou ao trabalho na mesma função de caixa. Porém, em janeiro de 2021, após anos de luta pela reabilitação e permanência no emprego, veio a notícia inesperada: Maria foi dispensada sem justa causa.
É neste ponto que o drama real de Maria se torna um dilema nacional. Maria argumenta que, como pessoa reabilitada, sua demissão só poderia ter ocorrido se a empresa tivesse contratado, antes, um substituto em condição semelhante conforme exige a lei. O empregador, por sua vez, esclarece que não só cumpre o percentual mínimo de pessoas com deficiência exigido pela legislação, a chamada "cota", como a ultrapassa em dois empregados.
Afinal, para dispensar a funcionária Maria, ou qualquer outro trabalhador com deficiência ou reabilitado, a empresa precisa apenas manter a cota mínima, ou é obrigatório contratar um substituto antes do desligamento?
O caso de Maria, apesar de fictício para fins de melhor ilustra este artigo, é apenas a ponta do iceberg da ausência de uniformidade na aplicação do art. 93 da lei 8.213/91, que tem como base a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, bem como a lei 13.146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), o qual acrescentou o §1º ao art. 93 da lei 8.213/1991 como parte de um conjunto de medidas para assegurar e promover o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, com vistas à sua inclusão social, cidadania e dignidade, em condições de igualdade substancial.
O TST reconheceu que a ausência de um consenso incentiva a litigiosidade e cria uma intensa insegurança jurídica, tanto para trabalhadores, quanto para empregadores, de forma que afetou o tema em incidente de julgamento de recurso de recurso repetitivo 312 (IncJulgRREmbRep-0000427-32.2022.5.17.0000), atualmente em fase de manifestações por terceiros que desejam contribuir para o debate.
O acórdão de afetação propõe dirimir a seguinte questão jurídica:
Para a validade da dispensa de pessoa com deficiência ou reabilitada pela Previdência Social, basta a comprovação do atendimento do percentual mínimo previsto pelo art. 93 da Lei 8.213/91, ou também é necessária a prévia contratação de substituto em condição semelhante à do empregado dispensado?1
A decisão final sobre a validade da demissão de Maria, personagem aqui deste texto, e de outros inúmeros trabalhadores com deficiência ou reabilitados agora depende da resposta que o TST dará à essa pergunta.
De acordo com o art. 93 da lei 8.213/19912, a reserva de vagas para pessoas com deficiência e beneficiários reabilitados varia conforme o número de empregados na empresa: (i) de 100 a 200 funcionários, a cota é de 2%; (ii) de 201 a 500, a cota é de 3%; (iii) de 501 a 1.000, a cota é de 4%; e (iv) empresas com mais de 1.001 empregados devem reservar 5% das vagas para esse grupo.
Numericamente, o art. 93 da lei 8.213/1991 comprova seu impacto positivo, pois, pelos dados do Ministério do Trabalho e Emprego3, o eSocial demostra que somente entre janeiro e junho de 2025 exatas 63.328 pessoas com deficiência ou reabilitadas pela Previdência Social foram contratadas em todo o país, sendo mais de 93% dessas admissões em empresas legalmente obrigadas. Hoje, o mercado formal emprega 634.650 pessoas com deficiência ou reabilitadas.
Apesar do crescimento de 60% de 2009 a 2021, apenas 54% das vagas reservadas estão preenchidas. Há um potencial enorme a ser explorado, visto que existem 7,3 milhões de pessoas com deficiência ou autismo em idade de trabalhar que não recebem benefício assistencial e que poderiam preencher as 964.675 vagas atualmente existentes no mercado de trabalho.
No âmbito do Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, o MTE estabeleceu a meta de promover a inclusão de pelo menos 120 mil pessoas com deficiência ou reabilitadas nos próximos quatro anos, por meio da fiscalização que prevê multas de até R$ 265 mil por descumprimento. Aliás, para ampliar a transparência em torno deste assunto sensível, foi criada a Certidão de Regularidade na Contratação de Pessoas com Deficiência e Reabilitadas.
É neste novo contexto de avanço, porém de meta ainda não plenamente alcançada, que o TST intervém. A Corte Superior Trabalhista aponta, ainda, a relevância do debate, ao destacar que a uniformização da exegese do art. 93 da lei 8.213/1991 é crucial para resguardar o acesso da pessoa com deficiência aos direitos sociais, conforme preconiza a Constituição Federal (art. 5º, caput, e 7º, XXXI), concretizando a igualdade material e honrando o princípio da dignidade humana, fundamento da República Federativa do Brasil.
O dilema jurídico, reconhecido pelo C. TST, pode ser resumido em dois grandes entendimentos quanto à interpretação do art. 93 da lei 8.213/91, relativamente à dispensa imotivada de empregado com deficiência ou reabilitado pela Previdência Social: a tese do cumprimento da cota, que é a visão majoritária atual; e a tese da cumulatividade, que aponta os requisitos como cumulativos.
A própria Corte admite que a ausência de jurisprudência uniforme entre os seus órgãos colegiados (total de 8 turmas julgadoras) incentiva tanto a recorribilidade interna, quanto propicia os entendimentos dissonantes entre os Tribunais Regionais, o que torna urgente a pacificação da matéria.
No âmbito dos Tribunais Regionais do Trabalho, de fato, os julgados demonstram a divergência:
ART. 93 DA LEI 8.213/91. DISPENSA DE EMPREGADA ADMITIDA EM COTA DE PESSOA COM DEFICIÊNCIA. AUSÊNCIA DE CONTRATAÇÃO DE SUBSTITUTO. NULIDADE. REINTEGRAÇÃO DEVIDA. Em que pese o § 1º do art. 93 mencionado não estabelecer garantia no emprego, prevê a obrigação ou condição legal de contratação prévia de substituto de condição semelhante, em evidente limitação legal do poder potestativo de dispensa, sob pena de nulidade da rescisão contratual operada. Por se tratar de fato extintivo do direito da parte autora ao reconhecimento da nulidade da dispensa, incumbia à reclamada comprovar que houve a contratação de empregado substituto em condição semelhante à da autora ou que cumpria, à época, os percentuais fixados no art. 93 da lei 8.213/1991, ônus do qual não se desvencilhou (art . 818 da CLT e art 373, II, do CPC). Devida, portanto, a reintegração da autora, ante a nulidade da dispensa. Recurso da parte autora a que se dá provimento para reformar a sentença no particular. (TRT-9 - ROT: 0000844-34 .2022.5.09.0088, Relator.: VALDECIR EDSON FOSSATTI, Data de Julgamento: 25/10/2023, 4ª turma, Data de Publicação: 6/11/2023)4
EMPREGADO COM DEFICIÊNCIA OU REABILITADO. DISPENSA IMOTIVADA. REQUISITOS DO ART. 93, § 1º DA LEI 8.213/1991. A dispensa de empregado com deficiência ou reabilitado pelo INSS somente poderá ocorrer após a contratação de substituto em condições semelhantes (deficiente ou reabilitado), e desde que preenchida a cota mínima legal exigida, na forma do art. 93, § 1º, da lei 8.213/91. Inexistente a comprovação dos requisitos legais, é nula a dispensa ocorrida, sendo devida a reintegração do laborista. (TRT-3 - ROT: 00112437920225030027, Relator.: Paula Oliveira Cantelli, Data de Julgamento: 14/11/2023, 4ª turma)5
A propósito, o aludido cenário de divergência não é muito diferente entre as turmas do TST, pois, consoante esclarece a Corte, sete das oito turmas julgadoras decidem no sentido de que, se o empregador cumpre a cota legal no momento do ato de desligamento do empregado com deficiência ou reabilitado, a dispensa é válida, mesmo se não houver contratação de outro empregado sob idêntica situação. Exemplificadamente:
AGRAVO INTERNO EM RECURSO DE REVISTA DO RECLAMANTE - DISPENSA IMOTIVADA DE EMPREGADO PCD - PORTADOR DE DEFICIÊNCIA - MANUTENÇÃO DO PERCENTUAL EXIGIDO PELO ART. 93, § 1º, DA LEI 8.213/1991. 1. Consta no acórdão regional que "mesmo apresentando certidão negativa de ID 838e46b, demonstrando o cumprimento da cota de empregados de deficiência ou reabilitados, prevista no caput do art. 93, da lei 8.213/91, cabia à recorrida, cumulativamente, comprovar a contratação de outro trabalhador com deficiência ou beneficiário reabilitado da Previdência Social para que fosse possível a dispensa da autora". 2. Do trecho em destaque, constata-se que o reclamado demonstrou o cumprimento da cota de empregados portadores de deficiência ou reabilitados por meio de certidão negativa. 3. A jurisprudência do TST firmou-se no sentido de que, uma vez assegurado pelo empregador o cumprimento do percentual de empregados PCD ou reabilitados previsto no art. 93 da lei 8.213/1991, é válida a dispensa de empregado PCD sem a reposição de outro trabalhador na mesma condição. Precedentes. Agravo interno desprovido. (TST - Ag-RR: 01009252220195010022, Relator.: Margareth Rodrigues Costa, Data de Julgamento: 26/6/2024, 2ª turma, Data de Publicação: 2/7/2024)6
Já a 4ª turma do C. TST adota entendimento distinto ao entender pela cumulatividade dos requisitos:
AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA DO RECLAMADO INTERPOSTO SOB A SISTEMÁTICA DA LEI 13.467/17 - REINTEGRAÇÃO - EMPREGADO COM DEFICIÊNCIA OU REABILITADO - DISPENSA SEM JUSTA CAUSA - AUSÊNCIA DE CONTRATAÇÃO DE SUBSTITUTO EM CONDIÇÃO SEMELHANTE - NÃO CUMPRIMENTO DO PERCENTUAL PREVISTO NA LEI 8.213/1991 - TRANSCENDÊNCIA NÃO RECONHECIDA. 1. Nos termos do art. 93, caput, § 1º, da lei 8.213/1991, a validade da dispensa de empregado reabilitado ou com deficiência está condicionada ao cumprimento da cota legal e da prévia contratação de empregado na mesma condição. 2. Como registrado no acórdão regional, a reclamante era portadora de deficiência, e o empregador não comprovou a contratação de outro para seu lugar em condição semelhante, nem o percentual mínimo de empregados com deficiência ou reabilitados previsto em lei, de modo que não foi observado o art. 93, caput, § 1º, da lei 8.213/1991. 3. A questão articulada não oferece transcendência econômica, política, social ou jurídica. Agravo de Instrumento a que se nega provimento. (TST - AIRR: 00205620520215040019, Relator.: Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, Data de Julgamento: 25/6/2024, 4ª turma, Data de Publicação: 1/7/2024)7
Sobre o assunto, não se olvide um princípio fundamental do movimento de inclusão das pessoas com deficiência: "Nothing About Us Without Us", que em português significa "Nada Sobre Nós Sem Nós"8. Por esse princípio, abordado em diversas normas internacionais, como a Declaração de Sundberg da Unesco de 1981, as resoluções 37/2 e 48/96 da ONU, a Declaração de Pequim e a Declaração de Madri, nenhuma política, lei ou decisão (NADA) deve ser formulada e implementada sem a participação plena (SEM NÓS) dos membros do grupo que serão afetados (SOBRE NÓS) por essa medida.
Tal contexto impactou a própria Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, cuja elaboração refletiu a atitude mundial de que as pessoas com deficiências precisam ser envolvidas nas decisões que afetarão suas vidas. Por isso que as decisões sobre a temática que envolva pessoas com deficiência e reabilitadas pela Previdência Social, v.g. emprego e saúde, devem ser tomadas com a participação delas, de modo a não se tornarem meras receptoras.
Neste aspecto, o próprio C. TST reconhece ser crucial a participação plena das pessoas com deficiência e reabilitados, inclusive através da figura do Amici Curiae (arts. 896-C, §8º, da CLT e 284, IV, do RITST), para que a grande batalha legal da personagem fictícia de Maria, com história real semelhante a de outros inúmeros trabalhadores e trabalhadoras, atenda ao princípio em questão.
A ênfase dada pelo TST ao tema do Trabalho Decente - através da Política Judiciária Nacional do Trabalho Decente (2023) e seus programas, em consonância com o conceito formulado pela Organização Internacional do Trabalho, em 1999; e a Agenda Nacional do Trabalho Decente e o ODS - Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 8, da Agenda 2030 -, revela o compromisso institucional que transcende a mera análise da jurisprudência, posicionando a mais alta Corte como um vetor de justiça social e desenvolvimento humano, afinal, "Cada processo representa uma vida, uma história e uma luta pela afirmação da dignidade humana"9.
Portanto, a inclusão ativa e informada das pessoas com deficiência e reabilitadas se trata de um elemento intrínseco à qualidade do desenvolvimento social do país. Para que a decisão final seja não apenas justa, mas plenamente legítima, ela deve ser construída sob o lema 'Nada Sobre Nós Sem Nós'. Diante de tal imperativo ético e normativo, deve-se fomentar a participação plena de entidades, associações, especialistas, professores e demais estudiosos em tal julgamento, para garantir uma decisão que reflita a experiência coletiva do grupo.
Ricardo Calcini é advogado, Parecerista e Consultor Trabalhista. Sócio Fundador de Calcini Advogados. Atuação Especializada e Estratégica (TRTs, TST e STF). Professor M. Sc. Direito do Trabalho (PUC/SP). Docente vinculado ao programa de pós-graduação de Direito do Trabalho do INSPER/SP. Coordenador Trabalhista da Editora Mizuno. Colunista nos portais JOTA, Migalhas e ConJur. Autor de obras e de artigos jurídicos em revistas especializadas. Membro e Pesquisador: GETRAB-USP, GEDTRAB-FDRP/USP e CIELO Laboral. Membro do Comitê Executivo da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Professor Visitante: USP/RP, PUC/RS, PUC/PR, FDV/ES, IBMEC/RJ, FADI/SP e ESA/OAB.
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1 TST-RR - 0000427-32.2022.5.17.0000, Tribunal Pleno, Ministro Presidente Aloysio Silva Corrêa da Veiga, DEJT 11/09/2025. Disponível aqui. Acesso em: 21/10/2025.
2 Planalto. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Disponível aqui. Acesso em 21/10/2025.
3 MTE. Brasil registra mais de 63 mil contratações de pessoas com deficiência em 2025. Disponível aqui. Acesso em 23/10/2025.
4 TRT-9 - ROT: 0000844-34 .2022.5.09.0088, Relator.: VALDECIR EDSON FOSSATTI, Data de Julgamento: 25/10/2023, 4ª turma, Data de Publicação: 6/11/2023.
5 TRT-3 - ROT: 00112437920225030027, Relator.: Paula Oliveira Cantelli, Data de Julgamento: 14/11/2023, 4ª turma.
6 TST - Ag-RR: 01009252220195010022, Relator.: Margareth Rodrigues Costa, Data de Julgamento: 26/6/2024, 2ª turma, Data de Publicação: 2/7/2024.
7 TST - AIRR: 00205620520215040019, Relator.: Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, Data de Julgamento: 25/6/2024, 4ª turma, Data de Publicação: 1/7/2024.
8 SASSAKI, Romeu Kazumi. Nada sobre nós, sem nós: Da integração à inclusão - Parte 2. Revista Nacional de Reabilitação, ano X, n. 58, set./out. 2007, p.20-30.
9 TST. Trabalho decente é tema da edição de outubro da newsletter TST Juris. Disponível aqui. Acesso em 24/10/2025.